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Foto do escritorDikamba Wa Ufolo

Um Espírito Viajante

«... Não foi cesariana mas, serraram a barriga da sua mátria... Óh mãe... Foi num lugar de encostas altas com florestas densas, o 'ndengue que, sem saber, carregava em seu dorso o peso de um fado de resistência. Quem era?, um nome que atravessaria tempos, um espírito indomável. Dizem que nasceu livre, mas foi levado cedo e aprisionado, como muitos de seu povo. Cresceu sob o domínio e a disciplina de um grupo 'nguma' que para o eufemismo se diziam colonizadores, mas nada disso apagaria a essência que corria em suas veias — o chamado de 'Ufolo' que ressoava desde seus ancestrais.


Esse ndengue que ninguém lhe sabia, se tornaria, anos mais tarde, aquilo que ditava o seu 'chamado', num lugar que não era apenas um refúgio, mas uma terra de renascimento, de força e esperança para aqueles que diziam 'NÃO' à  submissão. Com suas serras e esconderijos, se erguia como uma utopia preta em meio as terras de Pindorama que por conta de gente que não é gente se fez Brasil. Ali, cresceu, tornou-se homem e assentou. Ali, seu dijina se cravou na história, não apenas como um nome, mas como uma força.


E nos arredores que serravan dois irmãos, o seu tempo abraçou o infinito ancestral. Há quem data 20 de novembro de 1695, mas só a sua ancestralidade sabe quando, ele foi capturado e entregado a Kalunga, mas sua memória jamais se apagou. Assim como a terra fértil onde lutou, sua presença ainda germina nas mentes daqueles que lutam por justiça e liberdade. Em cada quilombo, em cada comunidade que resiste, ele vive. Não é apenas uma história que se conta, é um espírito que inspira, que empurra para frente, que recusa o esquecimento.


E assim, na sua lembrança, nos campos e ruas onde passa seu povo, o celebram e o chamam. Ele é resistência que ecoa, é luta que nunca cessa. É aquele que ainda guia, mesmo que seus pés há muito tenham deixado o solo da Serra da Barriga...»


E, este quem foi?

Copyright (c) 2021 David Fadul/Shutterstock.


Zumbi dos Palmares, um dos mais importantes símbolos de resistência negra no Brasil e na diáspora africana. Ele se destacou como o líder do Quilombo dos Palmares, uma comunidade autônoma formada por africanos escravizados fugidos, indígenas e brancos marginalizados, em um período de intensas perseguições e brutalidades coloniais. Palmares representava um bastião de liberdade, com seus habitantes vivendo em resistência ao sistema escravista e colonial.


A celebração do Dia da Consciência Negra, instituída em 20 de novembro em homenagem à morte de Zumbi, é uma data que carrega um significado profundo. No entanto, é crucial refletir se essa comemoração vai além do ato simbólico, promovendo uma verdadeira compreensão do legado de Zumbi e da história da resistência negra. Celebrar Zumbi com uma mentalidade de “Hakuna Matata”, como se esquecêssemos o passado em favor de uma celebração inconsciente, seria uma traição à sua memória. Zumbi não lutou para que seu legado fosse reduzido a um momento vazio de festividade. Ele viveu e morreu em prol da liberdade e dignidade de um povo, enfrentando desafios imensos e um inimigo poderoso.


Aqui, o conceito africano de Sankofa — símbolo Adinkra da cultura Akan, que nos ensina que “não é tabu voltar atrás e pegar o que esquecemos” — é um verdadeiro chamado para o Dia da Consciência Negra. Sankofa nos ensina a voltar ao passado para entender o presente e moldar o futuro com consciência e propósito. Em vez de uma comemoração superficial, a lembrança de Zumbi deve ser um momento de reflexão e conexão com os valores e ensinamentos ancestrais, um lembrete de que nossa história é de resistência e reavivamento.


Zumbi é o símbolo de uma batalha corajosa, da decisão de desafiar o opressor sem garantias de vitória, mas com a certeza de que a liberdade vale cada sacrifício. Ele representa um movimento amplo de insurgência contra a opressão colonial, uma resistência africana recriada no Brasil. Esse exemplo de fé inabalável ressoava no espírito de Zumbi e dos quilombolas que, como Tubman, seguiam adiante, sem medo, pois a liberdade era seu destino e nada os faria recuar. Era como na história contada sobre Harriet Tubman, que ao guiar seu povo para cruzar o rio extenso e profundo, enfrentou o receio daqueles que temiam se afogar. Mas Tubman, com firmeza, os encorajou: "Fiquem firmes, tem alguém que está nos guiar e proteger." Assim como ela, Zumbi se tornava para o Quilombo dos Palmares um guia inabalável, cujas palavras e presença fortaleciam seu povo na jornada de resistência.


E é por essa coragem, esse chamado pela liberdade que se mostrava mais forte que o medo, que se faz necessário contar essas histórias, que nos foram muitas vezes escondidas ou distorcidas. A verdadeira narrativa de resistência, tanto de Zumbi quanto de Tubman, é diferente daquela registrada nos livros pelos antigos colonizadores, onde as terras pareciam “cedidas” e o povo negro, “entregue”. Mas nós sabemos que não foi assim: houve uma luta feroz por liberdade, dignidade e soberania. Ao lembrarmos dessas histórias e ao contá-las por nós mesmos, preservamos a verdade e honramos a força daqueles que nos abriram o caminho, mantendo viva a chama que eles acenderam pela liberdade.


Celebrar Zumbi de maneira superficial é anular a profundidade de sua luta, como se seu legado fosse uma imagem sem substância. A verdadeira consciência negra não está apenas na comemoração, mas na conexão viva com as memórias e ensinamentos ancestrais, ressignificando o passado para projetar um futuro de justiça e dignidade. A espiritualidade africana é a chave para resolver os desafios dos povos africanos; ela confere a Zumbi um valor que ultrapassa as barreiras do tempo. A palavra “Zumbi” ou “Nzambi”, em Kimbundu, significa espírito — uma essência que permanece viva e inspiradora para aqueles que buscam a justiça e a dignidade.


Outro ponto importante é refletir sobre o calendário ocidental em que essas datas de comemoração estão inseridas. Ao celebrar Zumbi e outros heróis negros em datas determinadas por uma visão eurocêntrica, há o risco de limitarmos a profundidade de nossa memória. Assim como o 25 de dezembro no calendário cristão reflete valores e símbolos específicos, nossa comemoração deveria ressoar com nossa cosmovisão. Honrar Zumbi em um dia marcado por um calendário alheio é, em certa medida, adaptar nossa ancestralidade a moldes externos, como se nossa luta coubesse nos mesmos padrões culturais que oprimiram nossos antepassados.


O Quilombo dos Palmares não era apenas um refúgio físico, mas um espaço de liberdade e cultura africana recriada. Era a materialização de uma África viva e insubmissa, onde os valores de união e espiritualidade se mantinham. O espírito de Zumbi vive em cada luta pela liberdade, em cada ato de resistência contra as correntes invisíveis que ainda tentam nos aprisionar.


Que o Dia da Consciência Negra seja um despertar, um chamado para que Sankofa guie nossa celebração. Zumbi é um espírito vivo, um símbolo de resistência e espiritualidade que transcende o tempo. Celebrá-lo deve ser um ato de reflexão profunda e de conexão com nossas raízes, não apenas no dia 20 de novembro, mas como parte de uma consciência crítica e afrocêntrica viva todos os dias. Em Zumbi, nossa luta é eterna, nossa conexão é espiritual, e nossa força é inquebrantável.


Glossário Kimbundu


1. Ufolo: Palavra que significa "liberdade" ou "livre", simbolizando a luta pela liberdade e autonomia dos negros na resistência contra a escravidão e opressão.


2. Ndengue: Significa "criança", "menor" ou "menino". Refere-se à juventude ou à fase inicial da vida de Zumbi, em que ele carrega o fardo da resistência sem ainda saber o seu destino.


3. Dijina: Significa "nome". Representa a identidade de Zumbi, que é marcada pelo legado de resistência e sua permanência na história como uma figura de força e luta.


4. Nguma: Significa "inimigo". Usado para se referir aos colonizadores e opressores que estavam em conflito com os negros durante o período colonial.


5. Kalunga: Na tradição africana, na língua Kimbundu, remete ao mar e o mundo dos mortes. Porém, "Kalunga" é o termo que aqui no texto representa o mundo dos mortos, o além. Nesse contexto, está associado à captura de Zumbi, mas também à ideia de que a memória e o espírito de Zumbi continuam vivos.




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